segunda-feira, 23 de abril de 2012
“A vida está pulsando
ali. O livro faz parte da casa, da comida, da experiência, da maternidade, do
cotidiano”
(Adélia Prado, MG, 1935)
No dia 23 de abril celebramos o Dia Mundial do Livro. O LetrAÇÃO traz "Felicidade Clandestina", conto de Clarice Lispector, para comemorar com seus leitores.
Felicidade Clandestina
Clarice Lispector
Ela era gorda, baixa,
sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto
enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia
os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que
qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de
livraria.
Pouco aproveitava. E
nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato,
ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era
de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que
vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data
natalícia" e "saudade". Mas que talento tinha para a crueldade.
Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia
nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de
cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha
ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a
implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a
exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que
possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu
Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E
completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no
dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria
esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas
me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo.
Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar.
Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra
menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí
devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua
a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife.
Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias
seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me
esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou
simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo
e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e
o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu
poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no
decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com
meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que
era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso.
Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes
adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer
sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia
diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o
livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o
emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras
se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de
sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela
devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua
casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada
de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato
de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha
e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você
nem quis ler! E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia.
Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em
silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura
em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife.
Foi então que,
finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o
livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo
quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que
eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a
ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim
recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí
pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso
com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar
em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter
o susto de o ter. Horas depois, abri-o, li algumas linhas maravilhosas,
fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com
manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por
alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa
clandestina que era a felicidade.
A felicidade sempre iria ser clandestina para
mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho
e pudor em mim. Eu
era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro
aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com
um livro: era uma mulher com o seu amante.
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